Multidão 2021

21.3.2021

Mas, evidentemente, não pude pretender, em algumas páginas, traçar o perfil de uma ciência assim [a ciência da conversação comparada]. Na falta de informações suficientes para até mesmo esboçá-la, só pude indicar seu futuro lugar, e ficaria contente se, tendo conseguido fazer sua ausência lamentável, eu sugerisse a algum jovem trabalhador o desejo de preencher essa grande lacuna.

Gabriel Tarde A Opinião e as Massas, pg.3 [^1]

As multidões recentes que tomaram as ruas nos Estados Unidos antes da eleição de Joe Biden, no Brasil de 2013 e no Brasil de agora, na Primavera Árabe, no Occupy Wall Street, no Haiti, nos aglomerados de QAnon, dos contra vacina, dos foda-se a vida, ao observá-las, eu procurava encontrar algo em comum e ao compará-las, identificar aquelas cuja ação resultaram em alguma mudança significativa, seja ela subjetiva, política ou rebordosa. E aquelas que mal deixaram rastro, saíram de cena. Paralelamente, observava a popularização de termos acadêmicos sendo usados como o último suspiro da palavra resistência. Micropolítica dos afetos no Big Brother Brasil. Teorias requentadas e tentativas renovadas de esclarecimento de que mundo é esse, que gente é essa? Brotam voltadas para si. Enquanto a guerra autoimune no ocidente expõe os ossos de uma sociedade emocionalmente frágil, uma sociedade sem adultos. A classe média evanescente tranquilizada com remédio psiquiátrico assiste os psicopatas no poder em todo lugar, e frustra o breque dos apps. pausa. Qual foi o encontro multitudinário que produziu mudanças reais no discurso e nas políticas econômicas? Permitam-me deixar por uns instantes a subjetividade de lado. Aceitei o desafio de Gabriel Tarde, lançado em Maio de 1901 de esboçar o que viria a ser uma ciência da conversação comparada. Com nenhuma pretensão de fazer ciência e mais como esforço de entender a força desagregadora da multidão, sobre o que falam os muitos, o que pensam, e como se contagiam mutuamente.

A Gramática da Multidão: anos 2000

Semelhante convocação fez Paolo Virno, em 2001, nos seminários que deu na Universidade da Calábria, onde era docente. Filósofo e semiólogo, foi preso em 1978, acusado de fazer parte das Brigate Rosse (Brigadas Vermelhas), organização paramilitar de guerrilha comunista na Itália e de outros movimentos de esquerda como Autonomia Operaia, dos quais Antonio Negri também fazia parte. No livro Gramática da Multidão: para uma análise das formas de vida contemporâneas [^2], Virno também incentivou filósofos e sociólogos a pesquisar a multidão, termo que se tornou mais conhecido com o lançamento, em 2004, do livro Multidão: guerra e democracia na era do império, escrito por Antonio Negri e Michael Hardt.

Multidão, no senso comum interpretado como sinônimo de massa ou de povo, fez aparição em momentos específicos do pensamento político da modernidade, em Nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes e Baruch Espinoza, num arco temporal que abrange os séculos XV e XVII. No início dos anos 2000, o conceito de multidão foi resgatado e dali em diante passou a ser associado às teorias da pós-modernidade, do pós-fordismo e do capitalismo cognitivo. Há controvérsias sobre as origens da pós-modernidade, mas o pós-fordismo parece já mais consolidado, numa percepção mais ou menos academicamente fundamentada de que a sociedade industrial está em vertiginosa transformação desde a década de 1970. Não só em transformação, mas nos momentos finais do seu colapso, assim como a democracia esfacelada, esse fantasma, que cada vez mais acredita-se nem sequer ter um dia existido.

Embora reconhecesse o que chamou de o caráter ambivalente da multidão, diferente de Gabriel Tarde, Paolo Virno enxergou neste conceito algo mais prenhe de potencial transformador, mais como variante social alternativa. Em relação ao conceito hobbesiano de povo – o povo dominado, subjugado pelo poder do Estado –, a multidão foi vista com voto de confiança, não como esse “grupo amorfo”, de que falou Tarde, “incapaz, sob todas as suas formas, de pé ou sentada, imóvel ou em marcha, de estender-se além de um pequeno raio” e que desaparece “quando seus líderes cessam de tê-la in manu, quando ela deixa de ouvir a voz deles” (ver pg.13)

Virno, parecia acreditar (gostaria de saber o que ele pensa hoje) que a mera capacidade de pensar e de se comunicar fora dos lugares especiais de fala – o partido, a igreja –, trazendo ao primeiro plano os lugares de fala comuns, a partilha do pensamento, a vida da mente exposta e pública de forma muito natural e corriqueira, seria capaz de originar „uma esfera pública inédita, uma esfera pública não-Estatal, longe dos mitos e dos ritos da soberania“ (ver pg.17).

[Aviso de não confundir mente exposta, intelecto público ou intelecto geral, termos utilizados no livro – tomemos como exemplo a comunicação em redes sociais virtuais –, com o conceito de esfera pública. Um passo a frente seria interrogar também o que pode uma esfera pública? Voltarei a isso mais tarde].

Tenho a impressão de que ele não tinha tanto em mente a multidão cibernética e ainda não podia observar, na época em que pensava uma gramática da multidão – por uma questão mais de desenvolvimento tecnológico do que geracional –, sobre o que ela fala e como age. Pelo que de fato ela se interessa. Fake News, guerra híbrida, com certeza não existiam em seu espectro de análise, assim como parece ter dado pouca bola para a relação entre multidão e fascismo.


Nos meus anos de doutorado, o livro Gramática da Multidão: para uma análise das formas de vida contemporâneas me impressionou muito e até hoje me serve como uma grande bússola. E releio alguns trechos em busca de algo perdido. Mas por mais precisa que seja uma bússola em mostrar a direção a seguir, é preciso uma boa dose de intuição para se orientar. Mas quando você precisa a todo instante se reorientar, a bússola já não te serve tanto, você até toma algum caminho, mas parece sempre se encontrar no mesmo ponto. O que te resta é, portanto, só a intuição.

O que eu buscava e busco neste livro foi um elo entre teoria e prática, que nunca encontrei de fato. Ficou como uma ilusão de que seria possível para fora dos livros finalmente conectar teoria e prática, no mundo. E tendo a multidão como o grande agente da transformação – não a massa, não o povo. Mas, minto. Não é bem assim que nunca encontrei tal relação de modo palpável e visível. Tenho visto cada vez mais exemplos surgirem disto, que seria uma possível conexão, mas de uma maneira totalmente outra e muito semelhante ao que a vida no neoliberalismo nos apresenta, principalmente para os filhos dos anos 1980. Você faz um ou mais planos que seguem completamente outros, não se parecem em nada com o que foi planejado. Como se uma coisa não tivesse a ver com a outra: „planejo, portanto vai acontecer“, ou ainda: „estudei, logo terei um bom trabalho“. E todos os aspectos da vida a depender de um sistema de créditos sociais, o qual você deveria estar investindo desde que nasceu. Uma variação da teoria do capital humano.

É uma força que vem de fora, apertando uma outra que vem de dentro tentando se manifestar, enquanto uma outra que vem de cima e dos lados desvia o movimento de sair. Mas como aquilo que entra, sai, em algum momento sai enviesado, misturado. Já não é mais a sua energia interna, os seus desejos, somente, mas a contaminação dela com as outras forças, o fora com o dentro. Um movimento de adaptação inevitável.

Por um movimento semelhante, o elo teoria-prática retornou num outro conceito que falava da realidade através dos livros e a criticava. O homen pós-moderno tentando se virar nos trinta foi caricaturizado numa imagem ainda distante para os intelectuais há pelos menos uns vinte anos empregados nas faculdades de humanas, que quando se olhavam no espelho ainda não podiam vê-la refletida. Isso ainda antes da erosão galopante das humanas e das tentativas de extermínio dos cursos com menos procura.

Ou não foi assim que foi lido o empreendedor de si? Esse pobre coitado, sem ajuda nenhuma de lado nenhum. Essa marionete do sistema, esse tonto, foi lido em grande parte ainda com o distanciamento do pensador aristotélico que, para pensar o mundo, só pode estar em grande medida apartado dele, na congregação acadêmica, de onde pensa participar do centro do pensamento sobre a vida contemporânea. Esse rendido, empurrado para o trabalho precário, assim como a acumulação primitiva forçou a criação do proletariado. Se tirar o teto, depois o de comer, você ganha um servo. O empreendedor de si, mesmo endividado e estafado, não tem outra escolha se não continuar produzindo, mesmo que nem saiba o que de fato ele produz e para quem.

Mea culpa à parte, carrego sempre o embaraço de não ser muito capaz de estar nas coisas do mundo e ao mesmo tempo pensar o mundo, de não poder abraçá-lo sem reservas, de braços abertos. De ter me sentido muito confortável na congregação.

Mas nos anos 1960 e 1970 para onde nos voltamos quando queremos falar da multidão potente, mesmo no tumulto das manifestações de Maio de 1968 na França e da eclosão de grupos como o Baader-Meinhof, na Alemanha na mesma época, antes e um pouco desses eventos, quando a filosofia ainda parecia encontrar uma pertinência no mundo prático, parecia ainda existir a ideia de mundos possíveis e um forma de poesia menos angustiada com o mundo, ou angustiada, mas de alguma forma apaixonada, e um certo grau de liberdade e experimentação, uma certa confiança nos possíveis e até no impossível. Não qualquer tipo de filosofia, mas a filosofia pós-moderna, que construiu os paradigmas e pilares da pós-modernidade, que revisou categorias anteriores da filosofia-política e dos estudos sobre a linguagem e os atos de fala, sobre a semiótica e os estudos culturais, a desmesura da arte e tudo mais.

Da crítica à economia política nasceu a biopolítica, a necropolítica, as políticas da morte, do fazer-viver-deixar-morrer, e a mudança estrutural da esfera pública se deslocou para o ciberespaço, onde passou a viver seus anos mais solitários neste mar de imagens. E qualquer coisa que seja fruto do pensamento ocidental passou a ser colocado do avesso, decolonizado, confrontado. Uma verdadeira cruzada contra o ocidente sendo produzida no ocidente, desde o sul global e das epistemologias do sul.

Uma guerra autoimune que tem levado, em alguns casos ainda desapercebidamente, muitos desses pensadores do contemporâneo, os estrangeiros deslocados, estrangeiros e deslocados, diasporizados ou ferrados no sul global a pedir colo pro colonizador. Ainda não chegam a se lançar ao mar dos refugiados, mas todos nós já beiramos a vida matável.

E pra onde vão? Se ao cairmos (me permitam colocar no plural) neste vazio existencial aumentado pela vivência 24/7 dentro do computador, na pandemia, no niilismo produtivo do insone esgotado nas redes sociais, caímos sem bússola?

Na guerra autoimune contra o ocidente, enquanto tentamos reparar os danos originais da colonização ou corremos para os braços do primeiro mundo que tiver interesse em nos aceitar, enquanto reparamos também o barco que afunda. No corpo-a-corpo com os dispositivos e sofrendo a precarização de tudo e do trabalho também, parece mesmo que apenas uma porcentagem muito mínima de nós se tornaria a Carola Rackete [^3], que desviou o navio de resgate Sea-Watch 3, na ilha de Lampedusa na Itália, furando o bloqueio marítimo do navio de guerra Guardia di Finanza à entrada de 53 refugiados que estavam à deriva – ou o Eduard Snowden ou o Julian Assange.

Ou então afundamos todos juntos deixando alguns muitos boiando em seus coletes salvavida, ou viramos a Carola Rackete? Ou abraça sua causa e vai, dando as mãos para a mão invisível de algum nicho de mercado, o labirinto do empreendedor de si. Foucault revirando nas tumbas. E o empreendedor de si, ocupado o tempo todo em ter boas ideias, colocá-las em prática, assumir os riscos, os gastos, postar nas redes, fazer as melhores fotos, encontrar uma estética da marca. Tudo isso sozinho e com ajuda da multidão? do conjunto de singularidades em processo de individuação psíquica?

[Será preciso fazer uma pausa gigantesca para falar minimamente sobre como e por que, o conceito de sujeito foi pras cucuias e a filosofia pós-moderna nos substituiu por singularidades e agora vemos um retorno às identidades. Voltarei a isso mais tarde].


Parece que foi numa tentativa de responder perguntas semelhantes a estas que Paolo Virno resgatou o conceito de multidão. Retomando o que parece ter sido a principal querela do século XVI, teórico e prática, espelhada na formação do Estado Moderno na Europa e nas guerras, na lenta transição do poder soberano para um poder soft, que atingiu o seu ápice com a arte de governar dois séculos mais tarde e que produziu o Estado regulador da vida, urbanizador das cidades, melhorador dos níveis educacionais e de saúde.

O surgimento do capitalismo coincidiu com este processo de escolha entre o conceito e a realidade de povo, em oposição ao de multidão. O povo, o uno, a massa governada, representante de uma ideia geral manifesta na eleição de seus porta-vozes, a sua grande e última vontade, e a multidão, um conjunto de singularidades. No século XVI, a multidão de desajustados, reativos ao poder, detentores de um jus resistentiae, que:

Dito direito, não significa banalmente legítima defesa, mas algo mais sutil e complexo. O “direito à defesa” consiste em fazer valer a prerrogativa de um indivíduo, ou de uma comunidade local, ou de uma corporação, contra o poder central, salvaguardando formas de vida já instaladas. Trata-se, portanto, de defender algo positivo: é uma violência conservadora (no bom sentido do termo). Talvez o jus resistentiae, o direito a defender qualquer coisa que esteja e seja digna de perdurar, seja o que mais aproxima a multidão do Seiscentos à multidão pós-fordista. Não se trata, porém, de “alcançar o poder”, de construir um novo Estado, um novo monopólio da decisão política, mas de defender as experiências plurais, as formas de democracia não- representativa, usos e costumes, não-estatais.

Paolo Virno Gramática da Multidão, pg.19

Qualquer semelhança com o agora não é mera coincidência.

continua…

[^1] Gabriel Tarde. A Opinião e as Massas (2005) https://psicologiasocialbasica.files.wordpress.com/2019/09/gabriel-tarde-o-publico-e-a-multidao.pdf

[^2] Gramática da Multidão: para uma análise das formas de vida contemporâneas (2003) https://vocabpol.cristinaribas.org/wp-content/uploads/2014/04/Virno_Gramatica.pdf)

[^3] A Capitão pela Justiça (ECOA, 11.01.2021) https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/causadores-carola-rackete/