O Rosto da Multidão: singularidade e diferença?

5.4.2021

Se o “direito a defender qualquer coisa que esteja e seja digna de perdurar”, é o que temos em comum com a multidão seiscentista, qual o jus resistentiae que ainda detém? E de que forma poderíamos nos aproximar de uma definição um pouco mais precisa sobre quem são os indivíduos que compõe a multidão e de que forma atuam? Como e sobre o que conversam?

Em imagens da nossa memória recente (acesse), a multidão que carregou o Lula antes de ser preso, em 7 de Abril de 2018, e o levantou nos braços, e as manifestações “contra corrupção” e a favor do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, de 2015 a 2018, o que chama atenção são os rostos, os gestos e as roupas das pessoas. Há um enfrentamento de cores, na primeira, um vermelho dominante, na segunda, o verde-amarelo-CBF. Ambas as multidões apresentam euforia, gritos e choro, comuns a ambas as imagens, mas diferem bastante na quantidade de raiva e frustração que expelem.

Por sua vez, a multidão de 2013 não tinha um rosto definido. Ali cabiam todas as bandeiras e não-bandeiras, e muita gente que mal sabia o que lá fazia. Motivados pela corrente enérgica de um evento de magnitude tal qual o carnaval, caminharam quilômetros n'arrebatação. A classe média do centrão que pode sempre ser puxada – pra lá ou pra cá –, esteve presente, também levada pela corrente.

A grande revolta de junho de 2013 foi o ápice da intersecção de lutas não hegemônicas, que cozinhavam ainda em fogo brando, e entravam lentamente em ressonância com as lutas globais. Foi o primeiro grande lampejo coletivo brasileiro do século XXI, de que o cansaço era compartilhado e de que qualquer vontade de mudança só tomaria força em conjunto. Os múltiplos cansaços, mesmo sem uma coordenação clara entre eles, puderam pela primeira vez se manifestar. As motivações para estar ali não tinham necessariamente, naquele momento, algo comum de onde partiram, nem um lugar comum para onde se punham em movimento – algo que foi sendo refinado depois, de forma contínua, em desdobramentos futuros.

Havia um contexto de espoliação constante da classe trabalhadora – diretamente ligada ao primeiro convite à revolta –, tornado fratura exposta com a convocação para as manifestações que pediam redução das tarifas de transporte público, organizadas pelo Movimento Passe Livre (MPL), e que se tornou fio condutor para outras revoltas que ali explodiam [^1].

E todas essas multidões são muito distintas daquela que tomou o ABC em 1979, nas paralisações das fábricas sob liderança de Lula. No filme inacabado, o ABC da greve, de Leon Hirszman [^2], ouvia-se: “trabalhador unido jamais será vencido!, trabalhador unido jamais será vencido!, trabalhador unido jamais será vencido!”. Cantava-se o hino nacional como símbolo de um outro desejo de coesão social. As câmeras filmando tudo e uma alegria diferente da do carnaval e diferente do festejar raivoso por um impeachment bem sucedido ou por um governo caído. Algo mais próximo do lavar a alma. Em meio aos gritos de Lula, Lula, Lula!, um misto de autoconfiança fortalecida pelo juntar dos corpos no encontro com um grande líder que dava as coordenadas:

“Companheiros! Outra coisa [que tenho de dizer a vocês], é o seguinte: mesmo a gente estando cassado, mesmo a gente estando cassado, a diretoria vai assumir o comando desse movimento pra fazer o que nós vínhamos fazendo até quinta-feira. Não podemos deixar que muitas pessoas dêem orientação, porque o que a gente percebe é que começa a haver confusão na cabeça de cada um” (21:31 – 22:30).

O líder dá o comando. Ao final, alguém grita na multidão e pede para que se vá a igreja no dia seguinte, continuar o trabalho que o Lula pediu. Na Igreja Matriz de Santo André. Às sete horas. Como um altofalante, micro-líderes difundem a informação entre os demais.

A mesma multidão que se juntava nos estádios mostrou sua faceta religiosa. De braços erguidos e com bíblias na mão, cantando o pai nosso que estais no céu, o sindicato e a igreja apareciam soberanos como os lugares de proteção e resistência do povo ao rolo compressor da generalização. Tanto através do trabalho abstrato como do voto – o sufrágio universal que consolidou a democracia niveladora e a vontade geral –, o povo podia contar apenas com alguns poucos lugares especiais de resistência e proteção.

Mas falar em multidão do abc como metáfora para muita gente reunida, nos leva a retomar o conceito de multidão e o confrontar com a ideia de multidão no senso comum. Não estou falando do que acontece quando as pessoas se reúnem em protesto. A multidão de revoltosos. A multidão no estádio de futebol, a multidão grevista. O operariado fordista se aproximava muito mais do que se entende por povo, definição que também não tem relação alguma com a ideia pejorativa de “aquele povo”, ou ainda de povinho.

O campo de negociação entre os trabalhadores e as instâncias estatais e industriais estava ainda circunscrito às esferas de atuação possíveis, naquele contexto histórico, sendo o sindicato, a única entidade capaz de mediar os interesses dos trabalhadores. A idéia de multidão como conjunto de singularidades que age na diferença e não por semelhança (Virno), nos desloca de qualquer interpretação que se assemelhe a greve do ABC, na medida em que se afasta, critica ou ameaça o Estado. Nos coloca um desafio maior e mais ajustado ao século XXI, além de oferecer uma ferramenta mais acurada para pensarmos as relações sociais hoje. Além das nossas crises pessoais e familiares – parte indissociável do processo de desmoronamento dos sistemas de representação e dos lugares de proteção que ainda haviam em 1979.

Embora ali, na greve do ABC, estivesse já latente, implantado, o embrião da decadência social, econômica, cultural e política que podemos ver hoje tão claramente, aquele conjunto de pessoas reunidas pouco se assemelha às multidões dos anos 2000.

O ponto fundamental para compreender essa ruptura reside no conceito de singularidade – e de sua existência cada vez mais palpável. Trata-se de uma virada epistemológica e conceitual da forma como pensamos a nós mesmos e a sociedade – e de uma realidade observável (veremos à diante).

Pensar em singularidade ao invés de sujeito não só nos traz uma abertura de sentido como estabelece uma linha divisória entre o capitalismo fordista, sustentado na produção de bens e o capitalismo pós-fordista, sustentado na financeirização, no descolamento entre produção e trabalho humano e na chegada ao primeiro plano das relações sociais e de produção – como meios de produção –, as faculdades linguísticas, comunicativas, administrativas, criativas e de gestão (o intelecto público, geral). Fatores que reduzem em larga escala o poder social e econômico do antigo proletariado. Voltarei a isso mais à frente.

Mas para compreender o que se quer dizer com singularidade é preciso ter em mente as três dimensões que compõe a camada pré-individual – geral, indiferenciada e comum a todos nós –, que explicam a formação dos indivíduos na sua relação com os muitos.

O pré-individual é em primeiro lugar o fundo biológico da espécie humana (órgãos sensoriais, percepção), é a língua (algo que age em nós antes de aprendermos a falar e depois como intelecto geral, relação inter e intrapsíquica) e, por fim, o pré-individual é o traço fundamental que marca as relações sociais e de produção (história, cooperação social). A percepção, fundo biológico sem personalidade ou consciência, marca da espécie; a língua, que é de todos e de ninguém, o que temos em comum; e o intelecto geral, exterioridade, produção coletiva, conjunto das relações sociais, o que produzimos em comum, são as ferramentas através das quais os indivíduos se constituem na multidão.

Ou seja, o processo de individuação que nos torna indivíduos singulares é a passagem dessa camada de indiferenciação genérica pré-individual para algo particular, específico: o indivíduo singular. Este caldo que produz o indivíduo particular, embora conserve uma estabilidade que perdura no tempo – e que associamos com o sujeito constituído –, configura-se, no entanto, como um processo inacabado de individuação. Um processo evolutivo contínuo que mobiliza sempre e reiteradamente as três camadas que compõem o _pré-individual.

Em outras palavras, o processo de individuação da língua geral nos transforma em seres falantes-pensantes. E juntamente ao aparato cognitivo humano e à história, que também nos excede – língua, percepção e história – são o uno da multidão. Segundo Virno, a partitura da multidão, aquilo em que ela se baseia para agir. Uma premissa, não uma promessa. Algo de onde se parte e não de onde se quer chegar. Em outras palavras, a multidão tem às suas costas uma partitura composta desses elementos comuns e o sistema pós-fordista se desenvolve a partir destes fatores, mobilizando e capturando essas forças, como fica mais claro se pensarmos nas redes sociais virtuais.

O período social que tinha o povo como norma e ponto de partida para a política e para a formação do Estado não se construiu tendo como base esta partitura de que fala Virno. Esta partitura como premissa, como uno, pois esses fatores não haviam ainda se tornado meios de produção, na forma como se tornaram a partir dos anos 1970. De modo que o povo só podia esperar – para fora de si e através da intermediação dos lugares especiais e dos sistemas de representação de que dispunha –, a solução de seus problemas, localizados sempre no Estado.


Para chegarmos mais perto do meio, de uma aproximação entre a multidão de Gabriel Tarde e de Paolo Virno, dois autores que apresentam versões bastante antagônicas sobre os significados de multidão, busco encontrar a força agregadora e produtiva da multidão. Assim como o seu lado destrutivo – talvez o mais forte. Mas se sua potência anda latente, quanto tempo leva para que possa explodir de novo?

Para Gabriel Tarde, a multidão era um grupo social do passado, o mais antigo deles. Antecedeu a família. Seus laços de união eram feitos por semelhança étnica e suas diferenças, neutralizadas. A multidão, para ele, seria uma forma de associação pela semelhança e não pela diferença. Costuma se unir por uma fé ou objetivo comum, e os seus sentimentos se reforçam quando está aglomerada – em comparação ao sentimento do indivíduo isolado, leitor de um livro ou jornal, participante de um público que existe mais virtual do que fisicamente e raramente vai à rua se manifestar.

Em sua análise, as multidões se dividem em passivas (expectantes, atentas) e ativas (manifestantes, atuantes), com uma zona intermediária entre uma e outra – as multidões manifestantes. O seu humor e excitação varia conforme o potencial de contaminação de suas emoções e sentimentos. As multidões expectantes, que esperam pacientes ou impacientes o erguer-se das cortinas dos teatros e as atentas, cuja atenção a um espetáculo, aula ou discurso pode ralentar quanto mais numerosa for, são bastante infeciosas quando resolvem criticar, louvar ou cancelar algum ídolo.

Todas elas parecem irromper do acaso, sempre desorganizadas. As multidões ativas, flagelantes, suplicantes, processionais, miseráveis e esfomeadas. Grevistas. Revolucionárias, esbravejantes, rurais – as mais difíceis de se porem em movimento, mas perigosas quando o fazem. Religiosas e manifestantes no espaço urbano (as mais apaixonadas e furiosas); econômicas e industriais (como as rurais) e estéticas (como as religiosas). Haveria também uma multidão de soldados (militar) e de milicianos (bandidos).

As multidões ativas seriam mais destruidoras do que construtoras e são coloridas de amor ou ódio:

Não se sabe o que há de mais desastroso, ódios ou amores, execrações ou entusiasmos da multidão. Quando vocifera, tomada de um delírio canibal, ela é horrível, não resta dúvida; mas, quando se arroja, adoradora, aos pés de um de seus ídolos humanos, desatrela sua carruagem, ergue-o em triunfo nos ombros, na maioria das vezes é um semilouco como Masaniello, um animal feroz como Marat, um general charlatanesco como Boulanger, que é o objeto de sua adoração, mãe das ditaduras e das tiranias

Gabriel Tarde A Opinião e as Massas, pg.42

Por outro lado, multidões de amor, frutíferas, seriam as carnavalescas, as multidões de festa, efêmera, sua curta erupção é o solvente mais eficaz contra desavenças, assim como as de luto, que põem as pessoas a sofrer em união.

Por que ela se une pela semelhança e não pela diferença, o seu movimento é centrípeto, seu destino é encontrar a unidade, ela é a promessa de que seus objetivos serão garantidos, representados.

Para Paolo Virno, a multidão é a categoria que mais se ajusta a qualquer definição que se queira fazer hoje sobre esfera pública contemporânea. Ela é pluralidade, conjunto de singularidades que age na vida pública, na ação coletiva em um movimento centrífugo, ela é ativa no desmoronamento das instituições políticas e de suas formas de representação. Ela é antiestatal e antipopular, no sentido de contra a morosidade do povo. Do uno para o muitos, suas ações partem de uma premissa, não de uma promessa. E a sua premissa, que é a sua unidade, tem como base interesses comuns – e interseccionais, acrescento. Ela não exatamente combate o uno do povo, mas o redetermina.

No entanto, mesmo alertando para os riscos de o intelecto público não se converter em uma esfera pública ocupada dos assuntos comuns, a multidão virniana teria voltado a se manifestar numa coloração predominante de esquerda – é o que parece ao lê-lo. Ocupada da defesa do jus resistentiae daqueles que sempre foram privados de participação na esfera pública. No Brasil de 2013, na Primavera Árabe, no Occupy Wall Street, no 15-M.

Sua outra face, no Brasil vem pra rua contra a corrupção, nos aglomerados de QAnon, nos foda-se a vida!, esta também pode ser lida sobre o prisma da multidão, embora neste caso como uma força centrífuga bastante ancorada na neutralização das diferenças – mesmo isto sendo um paradoxo.

A sua adoração ao líder parece uma relação de povo com seu soberano, o que lhe configura uma característica mais homogênea e totalitária; cega, por vezes obcecada e bruta. Mas a forma como ela age, de fato – e principalmente quando deseja a militarização da sociedade –, promove e sustenta um estado contínuo de caos e de exceção. Impulsionada, de certo, por seu líder eleito, mas em muitos sentidos independente dele, o outro lado da multidão defende algo que considera ser digno de perdurar: a defesa de uma ideia distorcida de liberdade, que parece ser a sua premissa. Isto é uma hipótese.

Continua...


[^1] Em entrevista à Revista do Instituto Humanitas Unisinos, Jean Tible discorre de forma mais aprofundada sobre o assunto: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/580284-a-esquerda-dividida-por-junho-de-2013-e-a-impossibilidade-de-construir-novas-conexoes-entrevista-especial-com-jean-tible

[^2] http://armazemmemoria.com.br/abc-da-greve-leon-hirszman-1990-documentario/